quarta-feira, 6 de outubro de 2010

* Cédulas, Amores e Abismos

Por Jefferson Acácio



Atenção: Antes ou depois desse texto leia Anônima, Café e Melodia (é uma continuação)

“Custa caro senhor! Senhor, Senhor... Senhor!” repetia o garçom ao pé do meu ouvido e, ao mesmo tempo, todos os ruídos de vozes das mesas sumiam, as luzes desciam lentamente e o grupo de músicos daquela noite também desaparecia com o “chorinho. A penumbra envolveu tudo numa cortina de fumaça. Ficou apenas eu, o balcão, meu chope e o belo par de pernas da moça que acabara de entrar no bar e restaurante Tartarugas.

Levantei o chope apontando em direção à jovem que acabara de entrar no bar. Inclinei a cabeça em forma de admiração e bebi uma cascata do chope – sem tirar o olho de suas pernas. Minha garganta estava regada do líquido gelado diluindo o álcool na minha corrente sanguínea. Silêncio total, até mesmo a própria respiração.

Foram longos dias prezo no apartamento. Eu estava totalmente decadente após uma surpresa desagradável: Uma garota bailarina havia destruído em mim o que restava de credulidade nisso que chamam de paixão. E mais uma vez estou aqui a remoer o ódio e a culpa por colocar o próprio coração nesse cárcere privado. Essa garota surgiu quando eu me sentia um velho fracassado que entrou numa jornada ao grosso estilo Indiana Jones, porém mais para um alpinista desconhecido do que um herói. Um aventureiro aparentemente destemido portando um coração arqueológico escalando o monte mana no Himalaia. fantasioso, não é? Era assim que eu levava a vida esperando no tempo para entrar numa história fantástica digna de roteiros cinematográficos de amor ou inspiração para alguem que traduzisse em arte.

Nem acredito nas minhas próprias atitudes, me sinto um patético solitário avassalando corpinhos esguios de moças recém chegadas na fase adulta e carregando o espírito desbravador, sonhador e irreverente da juventude. Sentia-me um herói protetor, sempre de peito e braços abertos, imensos olhos, muita luxúria nos lábios, mãos paternais e feudais. Quem sabe até em vidas passadas eu debulhava as cavidades de “escravinhas”, com todo dengo, claro.

"Sentir" é muito perigoso quando se tem carência exacerbada. Tenho carência do calor humano, especificamente das humanas. A música sempre esteve muito presente sombreando meus passos. Como pianista, eu busco nas pessoas as melodias que elas precisam ouvir para sentirem-se seguras de que tudo está bem. Provo para as pessoas que o coração bate forte só pra anunciar que ainda funciona e não por exprimir dor e felicidade, pois estas são engendradas no próprio sistema nervoso.

Foi numa noite metropolitana de sexta-feira como hoje,um inverno estranho, com chuvas e uma brisa quente angustiante que conheci Ligia Matarazzo, a tal, ela mesma, avassaladora. Exatamente essa mesma angustia que contamina meu corpo ao pronunciar seu nome. Sinto calafrios. Meus impulsos me levaram à sombria caça por uma noite de prazeres imediatos, prática comum entre tantos  outros solitários. São meus refúgios das dores acumulativas de cada paixão, uma morte lenta e letal! Uma vez morto, nunca mais me permitimos amar e ser amados, só aos nobres corajosos ficam essas façanhas. Mas ainda estou vivo para tentar.

Expressivo nome para uma garota de vinte e dois anos, brasileira de descendência italiana e uma estonteante miscigenação com a matriz africana, bailarina, cândida e convidativa. Eu precisava senti-la e não sei ao certo se a senti, mas é possível que ela tenha sentido o meu “eu” muito mais, sem maliciosas entrelinhas. De fato, eu a toquei com todo o meu corpo, cheguei a acreditar que fossemos uma mistura homogênea não destilável!

Ela castigou-me de todas as formas, me deixou construir sonhos ao seu lado e no dia seguinte simplesmente partiu. Eu ainda a chamava de minha “bela adormecida de Tchaikovsky”. No dia seguinte eu fui cruelmente desperdiçado como a sobra de uma comida estragada. Quem já provou desses dissabores da vida sabe bem do que estou falando. Esse incômodo, é de uma dor tamanha que poderia comparar ao coração retalhado num açougue de quinta categoria. Há quem diz que essa minha franqueza límpida, doentio, e sensível não é própria para os homens do diminutivo aglutinador "macho". da espécie dos meros reprodutores. Mas esse forte aperto no peito não passa de uma farsa engendrada no meu cérebro. Queria acreditar no que falo.

Ela havia recuperado minhas esperanças. A esperança? É como ver uma rara borboleta azul no meio de uma metropole caótica, sombria e poluída. Naturalmente deveria ser encontrada em lugares quase inacessíveis ao homem, em pequenas e camufladas áreas tropicais, mas é vista sobrevoando a cidade arrebatando nosso conceito sobre o "impossível".

Hoje quem sabe outra esperança incide novamente no meu peito hibernado e afagado nos vícios alcoólicos. Eu sempre fui um bom freqüentador do Bar Tartarugas, até me apresentei algumas vezes. É uma atmosfera de boemia, distração, um clima intimista, com focos de luzes vermelhas nos cantos induzindo as pessoas a deixarem os estímulos sexuais aguçados com as bebidas e o belíssimo repertório dos músicos. É um local indispensável para saciar ao menos o desejo de um delicioso drink e quem sabe levar uma companheira de brinde para casa.

Como de costume, eu troco conversas com os garçons, revejo amigos, confidenciamos nossos truques de raposas. Falamos de política, futebol, mulher e até mesmo de novelas. E quando não encontro os amigos, eu fico sozinho no balcão, onde aprecio as atrações musicais que enfeitam o palco. Faço bom proveito do momento para assistir a linda vida alheia. Já que a minha não está muito interessante para a telinha.


Recordo-me de como conheci Ligia. Eu aguardava o sinal, quando ela atravessou a faixa de pedestre em frente ao meu carro, e pude senti-la atravessando verticalmente pela minha garganta ressecada. Como havia dito, sentir é algo muito perigoso, altamente tóxico, e pode trazer esperanças cegas. Eu via até raras borboletas azuís como o colorido da sua roupa de ballet e a pintura facial. Aquela mariposa mulata, aquela linda borboleta que eu desejei colecionar, capturar, presentear com flores, ela havia fugido para seu ciclo natural: A liberdade imaginada. Ainda me questiono quem fora o predador.

Desde então não bebo mais café, pois me lembra também a sua estratégia de escape, o tom madeira sucupira da pele da minha mulatinha, do nosso encontro no barzinho decadente “Carpas”, da nossa conversa prolongada e da aventura no apartamento. Desde aquele dia, continuo na mesma frenética nota afirmativa de que não foi apenas sexo. Juro que da minha parte não. Ao menos eu queria que fosse mais do que sede, fome, fogo e miséria... Bebidas, culinária, sexo e rompimento... Gole, mordidas, gozo e castigo. Após o climax do gozo, eu também desejei abrir vôo para a liberdade. Liberdade de amar. Liberdade talvez inventada ou surreal. Liberdade que é confundida com prisão.

Três dias com as portas de casa trancadas, um mês de seguidas trepadas insignificantes com outras desconhecidas bonequinhas carregadas de maquiagem. Desculpe a minha porosidade, a falta de sutileza e polidez.Perdi a compostura! Envelheci mais um ano e estou com 43. Envergonhado com o meu reflexo. Pensei em abandonar meu piano envenenado e dedicar mais tempo na minha loja de instrumentos. Um desperdício.

A carência é o meu instrumento de sopro, age na minha mente e atinge o pulmão do qual eu castigo com cigarro, como se não bastasse o próprio ar poluído dessa cidade. Um ano passou e eu me sinto ainda estacionado naquela sinaleira onde avistei Lígia pela primeira vez. Desde então tudo ficou pela metade, café, trabalhos, sorrisos, inspiração, repertório, aplausos exceto os murros no próprio peito! Então dois dias antes de voltar ao Tartarugas, eu recebi uma carta da minha querida mãe Rosalinda. A carta estava suja de teias de aranha da caixa de correio que há tempos o zelador do prédio não zelava. Na verdade, não passava de um relato sobre as pessoas da vizinhança com o objetivo de me incentivar moralmente a encontrar uma parceira para mim.


Ao terminar de ler a carta, senti uma enorme sensação de pecado por estar sozinho. Meus irmãos, tanto que temiam se apegarem a alguém, que constituíram famílias, apesar das crises típicas. Ninguém quer ficar só. Muitos topam qualquer coisa pra não ficarem sós. A carência é um sentimento perigoso, o abismo da vontade, o lugar comum dos abandonados, desprezados e esquecidos. Esta carta não veio numa hora bem-vinda, quando ainda tenho medo de borboletas.

Revirei cartas antigas das minhas paixões traiçoeiras, entre elas, Mariana... (suspiro). Estudamos juntos no Colégio Suzano Alvorada. Enamorávamos na praça da cidade com beijinhos “estudantis” e sinceros... Era carnaval quando firmamos nosso namoro estreado com o nosso primeiro beijo seguido de abraços pueris. Dividíamos os mesmos sabores da vida. O que nos importava era experimentar.

Seu pedido de casamento surtiu após cinco anos de namoro e eu estava prestes a ingressar na faculdade. Era uma fase de idealizações, inquietações e principalmente de escolha. Meu desejo era conhecer outras civilizações, eu idealizava uma carreira exemplar em Medicina ou qualquer outra de status, e me tornei pianista. Mariana riria das minhas convicções. Pena não ter escolhido ela para continuar experimentando a vida. Essa sim é traiçoeira. A vida. Suas surpresas são reveladas depois que tudo passou. Queria viver no passado ou que o tempo fosse sempre o presente de finitas edições.

Cá estou eu e o garçom, divididos pelo balcão, momentos antes da triunfante chegada de uma mulher. Já tomei três caipirinhas, no preço promocional de dois reais, um inteligente chamariz para os habitues da casa. As prostitutas disfarçadas de boas moças estão sentadas às mesas, lógico, convidadas pelos melindrosos senhores de carros importados e cartões de créditos sem limites. Daqui vê-se uma competição entre recordistas: quem mais bebe e quem mais paga.

Olha só o que encontro! Uma nota de cinqüenta reais. Simbólica. Foi propositalmente esquecida no balcão por algum “palhaço” a fim de pregar uma peça em algum “bobo”.  Mas há algo escrito aqui que diz: “Qual o custo da sua felicidade?”. Boa pergunta para um bobo como eu responder. Enquanto eu acendo o cigarro vou pensar numa boa resposta. - Garçom, o isqueiro por favor - As chamas acendem a imagem de uma onça pintada. As “onças” se multiplicam até formar um safári. Então um leopardo carnívoro me avista de longe, e chego até a travar o cigarro entre os lábios. Então ele vem na minha direção com passos silenciosos e astutos, com uma marca no pêlo escrito “felicidade”, e de repente o salto! Quimera eu ser a presa capturada pelas mandíbulas da felicidade! Vou guardar essa nota no bolso.

E continuando no delírio do álcool...Por outro lado a felicidade poderia ser demersal como as garoupas, escondida em algum canto profundo de um oceano. Ou quem sabe fosse baseada na materialidade. Creio que não. Caso fosse, as pessoas se transformariam em moréias venenosas defendendo seus royalties da felicidade. Acho que a felicidade tem uma natureza mais fraternal, mais fundamentada na árvore da família como os micos-leões dourado - os sujeitinhos pequenos de vida social defendem seus territórios apenas com o grito. A felicidade precisa ter graça, precisa voar, e não apenas saltar. A felicidade precisa de asas coloridas e precisa nos fazer serem pessoas lúdicas como as araras. Ou quem sabe como uma garça. Já pensou, se ela pousa nas mãos de um sortudo. Como posso ver, a felicidade estaria então nas mãos de muitas pessoas ou escondida nos oceanos profundos de cada uma delas.

Muita gente devia ser feliz nesse país, nesse continente, nesse planeta. Mas encontrar a felicidade parece ser incoerente ou uma idiossincrasia. As propagandas, novelas e filmes vendem uma imagem de vida social feliz. Há outros felizes que investem na matéria, na carne... Cuidam da estética, do superego, da forma física e dos prazeres imediatos, da vaidade e da luxúria. É um investimento caro que, em suas particularidades, importantes, principalmente quando relacionado à saúde. E em centenas de casos, nos preparamos com a melhor roupa, acessórios e perfumes caríssimos apostando num ritual de atração dos relacionamentos.

Mas ao olhar profundamente cada um, vemos que a maioria não se sente feliz, completos e donos de si. Eu mesmo adoraria ser meu próprio leviatã e não sofrer mais com os sinônimos da depressão: solidão, carência e vazio. Tantos investimentos para no fim da noite ficar sozinho – quantos já não passaram por isso, não é? O quanto você gastou de tempo em frente ao espelho, em salões, lojas, SPA, centros estéticos, cirurgias, academias, regimes, e tal e tal, para merecer alguém, que em alguns casos chega até a dedicar-se a você, mas depois descobrem superficialmente que não era isso que queriam.
Então você se abandona? Então você cria fugas aparentemente positivas? As pessoas verdes temem serem "a presa" da felicidade. O impacto de suas mandíbulas carnívoras realmente assusta. Mas é preciso ter coragem de se permitir diante do próprio medo. As pessoas maduras lamentam por não terem se permitido mais, e vivem a triste culpa de confundirem amor com prisão e trocado a felicidade pela solidão. E quem sou eu para falar dessas coisas. Um solitário cheio de máscaras enrugadas, em delírios, contradições e decadências do espírito.

Resta-me o meu velho escape no Tartarugas em busca de sorrisos fracionados por unidades indivisíveis do tempo. Sorrisos simbólicos e prazeres imediatos. Abismos, Ilusões, prisões pessoais, carências, insônias... Quero tirar do meu corpo e alma estas tatuagens em troca pela mordida da felicidade, mergulhar no oceano perdido dentro de mim, em algum oásis escondido nos olhos de alguém.

Enquanto isso, aqui vai mais gole de inveja, de nostalgias e outro gole é meu remédio. O burburinho de risadas, conversa na ponta da orelha, taças e colarinhos marcados de batom vermelho, perfumes de homens e mulheres, cruzadas de pernas, lambidas no pescoço, piscadas de olhos, um rodopio, dor de cabeça e peço um chope para fechar a conta.


Neste  exato momento, à meia noite, a tal desconhecida entra.Sua beleza parece silenciar tudo para ouvir o som do seu salto no piso de madeira. Eu digo comigo mesmo -"É castigo!". Não era Lígia, era uma nova borboleta! Na minha admiração, o garçom diz “Custa caro senhor!”, mas como não dei atenção, ele insiste “Senhor, eu disse custa caro”, o malandro está debochando de mim.

Um passo dessa nova anônima e uma dor é cravada no meu peito, outro passo e vejo a ponta do vestido longo furtando do lugar toda cor, outro passo e seu par de pernas me causam uma febre interna. Ela chega até o palco, cumprimenta os músicos do chorinho, pega o microfone... Sua boca umedece e deixa escapar a ponta da língua. Seu pulmão se enche de ar para nos deliciar ao som da sua voz e seus olhinhos de gude remetem-me à juventude pueril e sincera. Quando ainda não aprendemos a mentir com alto grau de cumplicidade.

Então respondo ao garçom com vibração e esperança nos olhos – “Não custa caro não rapaz. É um beija-flor!”. E neste instante, imagino o meu beija-flor num lindo coreto, e o tecido do seu lindo vestido soprado pela brisa de primavera, seu corpo nu, seu pulmão elastecendo-se, seu salto alto, e os olhinhos de gude brilhantes. A minha anônima é um beija-flor que veio para transmutar e pairar na janela da minha mente! Cédulas, amores e novos abismos!

2 comentários:

  1. Que texto forte! Indiquei no twitter. Posso fazer um breve post sobre ele no meu blog? Abraços

    http://celebresanonimos.blogspot.com/

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  2. Um belo texto! Conseguir sentir em suas palavras o que já havia sentido na pele, quando descreve a forma 'pouco preocupada' digamos assim com que as pessoas tratam o sentimento dos outros.
    Parabéns, seus textos sao otimos, sempre carregados de muita inteligencia.

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