quinta-feira, 4 de março de 2010

O Jeito de Pensar

Por Jefferson Acácio



Nem sempre estamos alinhados com os nossos reais propósitos, ou nem pensamos ainda sobre o que estamos vivendo, simplesmente nos permitimos usufruir do ato de existir. E assim por diante, envelhecemos a cada passar de horas, enquanto que nosso consciente julga-se jovem. Se alcançamos a melhor idade caímos no conceito primitivo de profetizar os acontecimentos respaldados da nossa enganosa sabedoria. O tempo não determina nosso grau de sabedoria sobre as coisas, quanto mais se nossos conceitos se endereçarem no passado.

Uma criança com toda a sua inocência, pode inconscientemente, perceber que viver não é apenas historiar. Isso também não significa que nossas experiências não tenham significados, pelo contrário, não merecem nossa barbárie e censura. A relativização do tempo é real, nossos relógios biológicos é que não estão sincronizados. Ver é olhar mais do que de perto, é enxergar do outro lado, é exorcizar os fatos e diagnosticá-lo às aversas. Há uma selvageria de simbolos, convenções sociais, estigmatizações e subalternizações de identidades para que um indivíduo esteja consolidado socialmente.

Nunca teremos aprendido o suficiente, e ainda assim acreditamos na lógica orgânica que o envelhecimento responde a conformidade com o nosso processo de amadurecimento. Muitas pessoas dedicam-se a um estilo de vida recolhida de meros anceios e metas capitalistas, ou sonhos emergentes. Nosso ato de viver é condensado pela necessidade de sobrevivência. É nesse abismo existencial de discentramento que construimos nossas realidades. O tempo não abre nossos olhos, nem os fecha, e a morte não é a redencão ou o caminho da verdade. É o teu processo de pensamento, seu jeito de perceber esse mundo que determinará a tua sabedoria. Você pode viver cem anos e não ter mudado sequer um ponto de vista, e ter cometido cem vezes o mesmo erro, e ter se arrependido em dobro por cada falha, e depois chamar isto de "experiência de vida”, e filosofar belamente sobre as cenas que viveu.
Só para exemplificar, certa vez, um sábio senhor caminhava por um jardim, na verdade, um corredor florido. De um lado, flores delicadamente murchas e desbotadas, e do outro flores grosseiramente perfeitas. Não era algum caso de descuido ou desmatamento. Havia um segredo mágico e misterioso. O sábio manifestou um ar de obviedade e balbuciou estas palavras: - “Tenho vivido longos anos, e em muitas estradas já andei. E mesmo por ser a primeira vez que vejo um jardim com flores tão desiguais como essa, ainda assim não me surpreendo. Posso compará-las às sociedades em que visitei”.

Um garoto, aproximara do mesmo jardim, e logo foi convidado pelo sábio senhor que anciava por discursar sobre a vida. E começou a teorizar sobre a sociedade, e explicando que aquelas flores representavam as desigualdades sociais, e assim por diante discutiu sobre probreza, governo, histórias e tudo o que conseguiu pescar da sua memória arqueológica. Após horas de conversa, o garoto ilustrou a situação das flores daquele jardim, do qual inspirava as observações de vida do sábio senhor e contrapôs as predileções que ouvira. “Senhor, não acredito que essas flores representem a desigualdade social. Se observar mais de perto verá claramente que as flores com aspectos envelhecidos, na verdade, são reais e evidenciam um processo natural, enquanto que as flores belas são simplesmente artificiais”, retrucou o garoto discordando do senhor. O sábio senhor, obviamente, ficou perplexo. Ele não havia observado as flores tão de perto. O seu modo de pensar estava radicalmente baseado no passado, tanto que esqueceu de abrir os olhos para a realidade evidente.

É o seu jeito de pensar que julga os fatos e as pessoas, e se não tomar cuidado com as visões que desenhou sobre a vida, o espírito leviano poderá tomar conta da sua fronte.

Minha Nudez

Por Jefferson Acácio

Nas manhãs e nas madrugadas
Meu corpo se ilumina e se apaga
Veste-se de purezas e pecado
Lembranças da noite passada

Da noite no cais e os cortejos do luar
Dos carnavais de cada noite serena
Das minhas caçadas noturnas por uma graça
Por uma troca de prazer de graça

Começo a nudez já no olhar
Sem mascaras à minha frente a me vestir
Despido da inocência é réu confesso
Meu corpo corre campos de batalhas

Meu querer e o meu fazer
Banha-se nas ribeiras, brinca de se molhar no outro
De fazer festa! De fazer euforia! De fazer navegações
É um oceano imenso que nunca adormece.

Corpo, traços e desejos
Impetuosamente destemido de pecados
Sacia fome e sede, agita e esgota
Corpo, benção, pulso, nudez premeditada

Sabedoria do Existir (Juventude)

Por Jefferson Acácio



Não espere envelhecer para conhecer a sabedoria do existir
Não espere as rugas para reconhecer sua beleza
Não crucifique tuas falhas, retraindo novas tentativas
Não basta apenas viver e esperar pelos acontecimentos

Você pode criar as suas próprias situações no tempo
A vida não é uma narrativa categorizada por capítulos
O ontem não precisa necessariamente repetir-se hoje
Cada dia você exerce os seus poderes

Quando se está triste você pode cantar
Quando se está monótono pode-se também dançar
Quando se tem medo de alguma coisa, é válido enfrentar
Quando o tempo é curto você pode ao menos sorrir

Esteja próximo de quem você ama
E se não estiver perto, mande cartas de amor
Há muito tempo não enviamos cartas com nossa própria letra
Depois que aprendemos a digitá-las

Se não sabe fazer um belo poema, conte então uma piada
Se não sabe desenhar, ao menos rabisque
Se não tem idéia do que fazer pra se divertir, viaje
Se não acostumou-se com o escuro, oriente-se pelo tato

Rime
Dramatize
Pinte
Estique-se

Antes de dormir, ore
Antes de vencer, agradeça
Antes de fazer sexo, use camisinha
Antes de fazer um filho, cresça

Após as refeições escove os dentes
Após olhar nos olhos diga a verdade
Após beijar, ensine ou aprenda a namorar
Após uma mentira insignificante, perdoe

Beije
Ame
Namore
Case

Para cada lágrima um abraço
Para cada abraço, energia
Em cada energia, retribuição
Em retribuição basta carinho

Chore
Perdoe
Erre
Tente

No lugar de palavrões, uma rima
No lugar da maldade e vingança, oração
No lugar da fraqueza, coragem
No lugar do sedentarismo, exercício físico

Descanse, ninguém é de ferro!
Arrisque-se, já que não tem certeza!
Acredite, só você conhece a própria capacidade!
Sonhe, não há mal acordar na mesma realidade!

Grite, num lugar que tenha algum eco
Registre, para evocar esse momento no futuro
Mergulhe, é uma sensação de estar noutro mundo
Voe, afinal de olhos fechados tudo se pode imaginar

Brinque, do mesmo jeito que fazia quando criança
Para matar a saudade, relembre
Pule o mais alto que conseguir alcançar
Se jogue no que você deseja, mas cuidado para não se machucar

Invente
Observe
Medite
Estude

Preste atenção nos conselhos
Escolha direito para não se arrepender depois
Se fez a escolha errada, concerte
Não consegue dizer com palavras, use os gestos

A juventude não tem idade
O envelhecimento é atemporal
Contemple a vida o quanto pode
Não se lamente pelo o que não fez no final

Homem, Decadência, Evolução

Por Jefferson Acácio


O homem descobriu a comunicação e fez a linguagem
A linguagem é ferramenta ideológica e com ela faz-se guerra
O homem foi coroado com o poder da escolha
A escolha levou o homem à vergonha do pecado
O homem inventou a justiça
A justiça libertou Barrabás
O homem institui as religiões
A religião condenou a revolucionária Joana D’Arc.
O homem, para entender o universo, desenvolveu a ciência
A ciência foi o calvário de Giordiano que defendia Copérnico.
O homem categorizou os povos por raça
A raça é a diferença recusada, por isto morreram revolucionários
O homem estudou a fé e formou uma doutrina
A doutrina castigou os índios e roubou-lhes as crenças
O homem em fuga de tanta atrocidade adoeceu de esquecimento
Natureza Humana... Perfeita contradição!
O Homem está na Decadência, e não na Evolução!

Arquivo Inativo

Por Jefferson Acácio


De volta ao meu sistema operacional
De volta aos meus planos, ao meu radical
Meus arquivos de origem, meus megas
Meus discos rígidos todos formatados

Estou novamente zerado, novo de fábrica
Pronto para outras convenções
Instalando modernos aplicativos

Minha mente é ciberespaço
Meu corpo é um maquinário siliconado
Cada ar que respiro é um byte estocado
Meu sexo é um programa de simulação virtual
Meu suor é lítio e minha inteligência é digital

Tenho de tudo nessa nova base sistemática
De tudo posso nessa fase tecnológica
Tenho de todos os recursos do poder humano

Sou ISO. Só me falta ligar alguns dispositivos
Só me falta ligar o amor
Que até então, é arquivo inativo.

Alma e Flores, Corpo e Bosques

Por Jefferson Acácio


Minha alma se deleita no berço dos amores
E meu corpo caminha por bosques encantados
Mas estão fazendo de mim um inventário
O que estão dizendo sobre mim é o contrário

Eu quis me contrapor, eu pensei em me impor
Eu reneguei, eu revoguei propostas de amor
Meu autocontrole desprogramado.
Sou agora um protagonista deste documentário

Minha vida documentada
Meus sonhos redirecionados
Eu queria flores todos os dias na minha cama
Eu queria ainda os verdes bosques nessa trama

E o mundo, com sua beleza mórbida
Foi tomando de mim os contos de fadas
E o mundo, com sua arte surreal
Foi dizendo que o amor não é real

E onde estou afinal?
Em que mundo ficou os meus sonhos?
Em que pomar se escondeu minha amada?
Em que bosque se isolou a minha alma?

Meu amor não é um evento fútil
Em que se repetem beijos e declarações emocionantes.
Nem é uma fase relâmpago de cenas novas
Meu amor não é fábrica de futuras amantes.

Não estou contracenando Shakespeare
Minha alma não quer um amor que acredita no próprio fim.
Alma está para flores
Meu corpo está para os bosques

Adoro-te

Por Jefferson Acácio


Adoro sua inconstância
Suas peraltices de menino desatinado.
E quando você está ligado
E quando se desliga.

Quando parte não leva nada de mim
E quando volta traz tudo o que preciso
Rouba-me as verdades e me compra com as mentiras

Adoro seu vendaval
Quando me arrasa por dentro
E consome minhas horas
Derrota minha paciência
Me esgota em lágrimas
Esvanece meu tempo

Adoro-te...

Como uma flor no jarro
Água na chaleira
O verbo ainda não conjugado
O dia que ainda não nasceu

Adoro sua ausência nos lugares que ando
E ainda assim, sua presença em mim
Onde o tenho de verdade como minha propriedade

Adoro como faz comigo e com as outras
Quando busco por você nas bocas sedentas
Somente adoro em palavras desmedidas
Em suspiros altos, que acordam as paredes da casa
Adoro-te em pensamentos e cegueiras

A Volante

Por Jefferson Acácio


Colocaram-me a volante, no controle do meu arbítrio
Devo me dirigir nas vias da conduta e bater o carro na censura.
Voar para sentir-se livre e cair desenfreado
Ultrapassar cada obstáculo e avançar os sinais vermelhos.
Enfrentar tempestades, buracos, nuvens e pedras no asfalto
Fazer o possível para chegar em algum lugar

Em busca de portos marítimos, aéreo e rodoviário...
E sempre preparado para os constantes embarques e desembarques.
Entre tantos faróis, comandos, e semáforos.
Às vezes perdendo as rotas, e desconhecendo o chão que me sustenta

Não estou tão seguro de mim
Vou sair atrasado, vou correr contra o tempo
Perder a direção, manobrar na contramão
E vou cantando pela estrada, guiando-me sem volante
E enxugando o rastro da chuva no pára-brisa...
Sem medo, vou sem freios na rodagem.

A Lenda

Por Jefferson Acácio


Reza a lenda que o ser humano sabe viver em sociedade, e desde que aprendeu a comunicar-se, foi abençoado por técnicas que segregariam a melhor convivência e desenvolvimento das relações humanas. Silenciosamente a lenda é desmistificada quando deparada com a realidade do mundo. De fato, é uma aldeia global, de muitas tribos, de diminuição das fronteiras da informação. Uma aldeia na mensura de um planeta.

Por sorte ou azar, estamos endereçados nesse mundo, e querendo ou não rupturas sociais nos envergonham em face a idealizações que asseveramos vilmente que mudariamos a realidade refletida em processos hegemônicos de confrontos sociais, politicos, relgiosos e culturais. O homem dedica mais tempo com a morte dos seus principios que a vitalização da lenda que se concebeu em suas ancestralidades. A derrota do amor e da paz mundial é rogada por nós pecadores como prova da nossa ignorância.

Temos uma meta de construir a melhoria dos relacionamentos, e não o isolamento. Muitas vezes sublinhamos como paz a eliminação da presença de quem nos oprime, do que nos provoca e de quem nos inveja. É uma meta incrivelmente simples, que depende apenas da resignação da ignorância humana de pensar apenas no próprio nariz.
Enquanto que substanciados nas metas universais, há pequenas e inúmeras ações que deviamos desempenhar a cada instante da nossa vida, contribuindo para a solidificação do amor. Se soubessemos diluidamente cada segundo de estar sozinhos, saberiamos valorizar melhor a presença do outro. Estamos no escuro, descumprindo promessas, errando os caminhos, contemplando as individualidades, rompendo com os principios e preceitos do amor.

Quantas vezes a cegueira ou miopia da consciência nos fez desmoralizar a alma? Corrompendo-se na entrega dos seus valores essências por uma troca simples e diversificada de prazer, seja pela vaidade e ganância, ou pela obsessão de saciar a carne. Precisamos nos refazer e fazer valer a lenda.

terça-feira, 2 de março de 2010

* Anônima, Café e Melodia

Por Jefferson Acácio


“Quero café!” – Foi seu penúltimo pedido assim que acordara. Meus olhos já espojavam sob o corpo dela. O cetim rasgado do lençol, as peças de roupas ainda espalhadas pelo chão do meu quarto e minha admiração por ela confirmavam que “gozei!” – repetia meu subconsciente provocando um sentimento de penetração.

A conheci nas minhas caçadas noturnas por uma graça que geralmente tem um preço que costumo pechinchar. Algumas madrugadas me renderam promoções do tipo ‘Pague menos por mais’, ‘cliente satisfeito come outra vez’ ou ‘se indicar mais freguesia ganha cortesia’. Mas essa noite me ocorreu o inusitado, pois não tratava-se de uma prostituta. Era uma bailarina, combinação perfeita comigo, pois sou um pianista. Música e dança se encaixando através das suas linguagens. As mãos e a voz manipulando o som, e temperando os sabores de cada emoção produzida pela música, simultaneamente traduzida pelo corpo a cada milésimo de segundo através da dança.

Fazia um absurdo calor aquela noite, eu dirigia de janelas abertas quando parei na sinaleira. Enquanto eu aguardava pelo sinal, ela atravessou a rua e pude senti-la atravessando verticalmente pela minha garganta e descendo com minha saliva. Eu precisava salvá-la de um possível afogamento no percurso que fazia até meu peito, correndo o risco de impedir meu fôlego. Ela não me viu, e sem saber estava na minha câmera subjetiva, registrada e mantida como cárcere na minha mente.

O Teatro XXII, Avenida dos Amores, Bloco A, travessa dos Acostumados, às 21h apresentava o espetáculo de ballet clássico e contemporâneo “Estranho Esgotamento”. Poesia, música e dança emolduravam a obra artística que abordava a relatividade do tempo, a espera, e a frustração pelos desejos. Eu estava esgotado de circular de rua em rua na esperança de encontrá-la novamente. De repente esse cartaz do teatro tornou-se uma pista que me levaria até a minha Anônima.

Afinal, ela estava apressada, com a polpa do cabelo arrumada, previamente pronta para vestir o figurino, e agora confirmo que havia um entusiasmo e talvez uma ansiosidade nos seus passinhos de garça. Ela ia se apresentar para toda aquela plateia, cerca de 700 pessoas, e ainda não fomos apresentados.

Primeiro toque, eu sentado na primeira fileira, como se ela fosse me reconhecer. Por outro lado, eu poderia contemplá-la mais de perto. As Cortinas estavam ainda fechadas, assim como meus olhos na tentativa de lembrar-se do seu rosto para que eu pudesse identificá-la entre as outras bailarinas. Tarefa difícil, pois são todas padronizadas com chitas, filós, saias, anáguas, sapatilhas, a base excessiva nas madeixas, e o mesmo sorriso ensaiado.

Segundo toque, ouvia-se ainda o burburinho do publico, todos ansiosos pelo espetáculo. Certamente haviam ali seus familiares, os amigos da escola, pois não escondia ter uns 22 anos. Possivelmente devia ter um namorado da mesma faixa etária, embora meus 43 não me desconcertavam da chance de conquistar sua atenção. Na verdade, eu estava mesmo preocupado.

Terceiro toque. “Silêncio, Silêncio. Já vai começar” – alguém da plateia, por coincidência tirara essas palavras da minha cabeça. Aos poucos, todos diminuíam o volume sonoro de suas vozes, agora sussurradas. Quando, de repente: Cortinas abertas, iluminação, pulsação vital, trilha sobe lentamente com entrada e saídas do corpo de ballet, iniciando uma cena.

Ela apareceu divina num vestido florido, deslumbrando os mercenários com pernas e braços nus, esmalte vermelho, batom... Ela se enfeitava no espelho do cenário. Na ponta dos pés, e braços erguidos, ela desenhava uma fada com o corpo refletido das luzes cenográficas, e fazia um movimento de rotação, assim como a lua. Eu desejava movimentos de translação e revolução, beijos e talvez tocar para ela, e desposá-la ali mesmo naquele palco. Minha atenção a ela se convergia e somente aquela deusa era o meu foco ritualístico.

Corria o tempo em fast motion e o relógio apontava meia noite, a lua minguante estava cheia de beleza, e meu peito invadido de uma intenção de cortejá-la, mas também invadido de uma tensão. “Ela não é uma prospituta, mas eu sou um cachorro no cio”, eu dizia para mim mesmo, interpretando um equilibrista, contendo meus impulsos e temendo não se precipitar. “Por que a deixei partir? Por que não fui elogiá-la no palco? Que espécie de homem sou, em deixar uma mulher daquela escapar de mim?” – eu agonizava pela minha falta de atitude.

Terceiro gole de um licor caribenho, num barzinho decadente, quando ela entrou e pediu café. – “Dois dedos, por favor. Bem quentinho!” – disse com um sorriso mágico. Me espantei, e por pouco sentia-me borbulhando dentro de sua chicara quentinha esfumaçando o desejo pelos dois dedos de café. Pensei comigo mesmo “Mulata, cor de café, também quero dois dedos”. Graças ao licor, levantei e me aproximei elogiando a bela apresentação.

Conversamos despercebidamente, como se as horas se escondessem no preparo do vinho que degustamos discutindo sua tese de monografia sobre a crise da masculinidade. Reconfigurações das identidades e as mudanças do comportamento do homem na sociedade pós-moderna... O discentramento dos sujeitos, homem submisso e mulher ocupando o topo das decisões. Finalmente, chegamos ao sexo, na discussão... Eu, objeto de análise, e ela, a minha bailarina de contemplação. “Qual o estado dessa arte? Qual o universo epistemológico nesse corpo nu?”, eu a imaginava sem anáguas.

Começamos esses estudos teóricos no barzinho decadente, passando por um restaurante requintado de culinária francesa, para afinar melhor nossa conversa, ao som de Villa Lobos. O pianista da noite, conhecido meu, ofereceu-me a honra de mostrar meus dotes à bailarina, que mostrou tambem seu número. Terminamos o passeio com um beijo ao deixá-la em frente ao seu apartamento. Foi inevitável, pois meu encantamento me polia de cometer um erro de tomar qualquer atitude, que podia ser julgada “indecente”. Mas, o beijo não partiu de mim. “Suba comigo!”. Este foi seu primeiro pedido, logo concebido e confesso ‘ela dirigiu a mim e o meu carro’.

No elevador, seus lábios visitavam os meus, minhas mãos visitavam a curvatura da cintura às coxas marcadas pela meia do ballet. Perdi o controle de mim entoando a melodia do apartamento, prova do meu delírio: A porta... O trinco... O arco... A flecha... A bailarina... Os olhos... O pianista... Os braços... Mãos... Cintura... Um laço... Os lábios... O calor... É amor?... A cama... Nós na interação em castidade e o tempo na cidade congelado ao nosso redor.

Estávamos zen e num zoom-in fazíamos um closer do beijo que decodificava o choque de prazer que sentíamos. Parecia uma incorporação de sentidos mágicos. Dois corpos celestes desabrigando-se do espaço e tempo zerados. Uma sinuosa trama de entregas... Suspiros! É festa!... O zíper... Encosta. O peito... Respeito?... Carinho... Os lençóis... Um nó... Pernas e braços nus... Pão-Francês... Garganta... Leite... Pescoço... Lingerie... Os beijos... Uma cena... Incenso... No quarto... Alfazema e também um perfume de rosas... Pecado nos quadris...

Eram melodias de maestro, sem ensaio, sem plateia. Eram as linhas implicitas dos nossos olhares. Os acordes eruditos do piano insistindo em tocar uma melodia fértil e dionística. As partituras do corpo dela faziam-se de melodia. Como bailarina, ela interpretava um perfeita pianista, agarrou-me por trás como se abraça uma harpa, e servi de instrumento. Ela me guiava num tension-release como ao ballet moderno de Martha Graham. Pensei que estivesse flutuando tamanha intensidade... Carnudos lábios... Negrume.

Numa ‘volta’ segurei seu corpo e girei-a sobre mim. `Contratempos`. Voltamos para os tombes e cabriolés, entrelaçamo-nos seguindo mise-en-scenes calorosos. Bailamos suados em pas-de-deux. Empinadas... Rebeldias... Que figura bela, quase simétrica de formas geométricas desenhava com ela em meu colo. Ela sem collant, eu colando-se... Sapateado... Fox Trot... Duelavamos compenetradamente irracionais... Alma... Corpo... Num ritual sagrado-profano dualístico... Um espetáculo de energias multidimensionais... Aplausos! Assovios! Chegamos ao apogeu ufânico do prazer.

Enfim o cansaço... O sono... A madrugada... Embrulhado nos abraços e entrelaçado... No relance dessa seqüência me apaixonei. O despertar... "Minha bela adormecida de Tchaikovsky", dizia eu em voz baixa enchendo-a de beijos minuciosos desde as mãos suaves, até os seios medrosos que se escondiam no sutiã, naquele vestido florido que estava jogado no chão. Arranquei-lhe tudo. "Perfeita", eu balbuciava.

Nos meus cálculos, minha puberdade começou aos oito anos se eu contasse a primeira vez que debrulhei um brotinho avermelhado, mas, de fato, foi aos dezesseis anos que eu projetava a barba, a voz... Aos dezoito, eu era um homem feito, e meu coração já começara a descontrolar-se com batidas apaixonadas. Desde então, vinte e cinco anos se passaram, namoros, noivados e casamentos falidos, e ali estava eu novamente, numa nova composição e cheio de esperança. Não era uma prostituta, era uma bailarina adormecida.

Ela despertou e pediu café, então levantei-me com passos imprecisos ainda numa espécie de transe até a cozinha. Som BG da porta que me despertara da derrota. Na mesma velocidade em que despiu-se, na noite passada, eficientemente vestiu-se, e sem maquiagem, sem café, partiu deixando um bilhete que dizia "Uma noite... Um sonho... Mas peço que guarde esse sonho por mim, não posso seguí-lo. Meu único sonho é o palco". Ao terminar de ler, sua presença foi se reduzindo a uma mancha desbotada, e sua imagem distorcia meus sentidos, que desapareceu como um vulto, como zoom-out seco e amargo.


Velas e terços... Lenço e patuá.... Incenso e chamas no meu travesseiro.... Taças quebradas próximo à cama... Sangue no meu pé direito... "Não era só sexo!", eu gritava em prantos, como um muleque indefeso magoado... "Não era só sexo!", essa foi a canção do dia inteiro... Rua fria, sob a lua morta... Nem lembro ao menos seu codenome... De volta ao clube decadente... De volta às caçadas noturnas sem sentido... Às canções líricas do piano envenenado e envelhecido... Anônima, café e melodia.