terça-feira, 2 de março de 2010

* Anônima, Café e Melodia

Por Jefferson Acácio


“Quero café!” – Foi seu penúltimo pedido assim que acordara. Meus olhos já espojavam sob o corpo dela. O cetim rasgado do lençol, as peças de roupas ainda espalhadas pelo chão do meu quarto e minha admiração por ela confirmavam que “gozei!” – repetia meu subconsciente provocando um sentimento de penetração.

A conheci nas minhas caçadas noturnas por uma graça que geralmente tem um preço que costumo pechinchar. Algumas madrugadas me renderam promoções do tipo ‘Pague menos por mais’, ‘cliente satisfeito come outra vez’ ou ‘se indicar mais freguesia ganha cortesia’. Mas essa noite me ocorreu o inusitado, pois não tratava-se de uma prostituta. Era uma bailarina, combinação perfeita comigo, pois sou um pianista. Música e dança se encaixando através das suas linguagens. As mãos e a voz manipulando o som, e temperando os sabores de cada emoção produzida pela música, simultaneamente traduzida pelo corpo a cada milésimo de segundo através da dança.

Fazia um absurdo calor aquela noite, eu dirigia de janelas abertas quando parei na sinaleira. Enquanto eu aguardava pelo sinal, ela atravessou a rua e pude senti-la atravessando verticalmente pela minha garganta e descendo com minha saliva. Eu precisava salvá-la de um possível afogamento no percurso que fazia até meu peito, correndo o risco de impedir meu fôlego. Ela não me viu, e sem saber estava na minha câmera subjetiva, registrada e mantida como cárcere na minha mente.

O Teatro XXII, Avenida dos Amores, Bloco A, travessa dos Acostumados, às 21h apresentava o espetáculo de ballet clássico e contemporâneo “Estranho Esgotamento”. Poesia, música e dança emolduravam a obra artística que abordava a relatividade do tempo, a espera, e a frustração pelos desejos. Eu estava esgotado de circular de rua em rua na esperança de encontrá-la novamente. De repente esse cartaz do teatro tornou-se uma pista que me levaria até a minha Anônima.

Afinal, ela estava apressada, com a polpa do cabelo arrumada, previamente pronta para vestir o figurino, e agora confirmo que havia um entusiasmo e talvez uma ansiosidade nos seus passinhos de garça. Ela ia se apresentar para toda aquela plateia, cerca de 700 pessoas, e ainda não fomos apresentados.

Primeiro toque, eu sentado na primeira fileira, como se ela fosse me reconhecer. Por outro lado, eu poderia contemplá-la mais de perto. As Cortinas estavam ainda fechadas, assim como meus olhos na tentativa de lembrar-se do seu rosto para que eu pudesse identificá-la entre as outras bailarinas. Tarefa difícil, pois são todas padronizadas com chitas, filós, saias, anáguas, sapatilhas, a base excessiva nas madeixas, e o mesmo sorriso ensaiado.

Segundo toque, ouvia-se ainda o burburinho do publico, todos ansiosos pelo espetáculo. Certamente haviam ali seus familiares, os amigos da escola, pois não escondia ter uns 22 anos. Possivelmente devia ter um namorado da mesma faixa etária, embora meus 43 não me desconcertavam da chance de conquistar sua atenção. Na verdade, eu estava mesmo preocupado.

Terceiro toque. “Silêncio, Silêncio. Já vai começar” – alguém da plateia, por coincidência tirara essas palavras da minha cabeça. Aos poucos, todos diminuíam o volume sonoro de suas vozes, agora sussurradas. Quando, de repente: Cortinas abertas, iluminação, pulsação vital, trilha sobe lentamente com entrada e saídas do corpo de ballet, iniciando uma cena.

Ela apareceu divina num vestido florido, deslumbrando os mercenários com pernas e braços nus, esmalte vermelho, batom... Ela se enfeitava no espelho do cenário. Na ponta dos pés, e braços erguidos, ela desenhava uma fada com o corpo refletido das luzes cenográficas, e fazia um movimento de rotação, assim como a lua. Eu desejava movimentos de translação e revolução, beijos e talvez tocar para ela, e desposá-la ali mesmo naquele palco. Minha atenção a ela se convergia e somente aquela deusa era o meu foco ritualístico.

Corria o tempo em fast motion e o relógio apontava meia noite, a lua minguante estava cheia de beleza, e meu peito invadido de uma intenção de cortejá-la, mas também invadido de uma tensão. “Ela não é uma prospituta, mas eu sou um cachorro no cio”, eu dizia para mim mesmo, interpretando um equilibrista, contendo meus impulsos e temendo não se precipitar. “Por que a deixei partir? Por que não fui elogiá-la no palco? Que espécie de homem sou, em deixar uma mulher daquela escapar de mim?” – eu agonizava pela minha falta de atitude.

Terceiro gole de um licor caribenho, num barzinho decadente, quando ela entrou e pediu café. – “Dois dedos, por favor. Bem quentinho!” – disse com um sorriso mágico. Me espantei, e por pouco sentia-me borbulhando dentro de sua chicara quentinha esfumaçando o desejo pelos dois dedos de café. Pensei comigo mesmo “Mulata, cor de café, também quero dois dedos”. Graças ao licor, levantei e me aproximei elogiando a bela apresentação.

Conversamos despercebidamente, como se as horas se escondessem no preparo do vinho que degustamos discutindo sua tese de monografia sobre a crise da masculinidade. Reconfigurações das identidades e as mudanças do comportamento do homem na sociedade pós-moderna... O discentramento dos sujeitos, homem submisso e mulher ocupando o topo das decisões. Finalmente, chegamos ao sexo, na discussão... Eu, objeto de análise, e ela, a minha bailarina de contemplação. “Qual o estado dessa arte? Qual o universo epistemológico nesse corpo nu?”, eu a imaginava sem anáguas.

Começamos esses estudos teóricos no barzinho decadente, passando por um restaurante requintado de culinária francesa, para afinar melhor nossa conversa, ao som de Villa Lobos. O pianista da noite, conhecido meu, ofereceu-me a honra de mostrar meus dotes à bailarina, que mostrou tambem seu número. Terminamos o passeio com um beijo ao deixá-la em frente ao seu apartamento. Foi inevitável, pois meu encantamento me polia de cometer um erro de tomar qualquer atitude, que podia ser julgada “indecente”. Mas, o beijo não partiu de mim. “Suba comigo!”. Este foi seu primeiro pedido, logo concebido e confesso ‘ela dirigiu a mim e o meu carro’.

No elevador, seus lábios visitavam os meus, minhas mãos visitavam a curvatura da cintura às coxas marcadas pela meia do ballet. Perdi o controle de mim entoando a melodia do apartamento, prova do meu delírio: A porta... O trinco... O arco... A flecha... A bailarina... Os olhos... O pianista... Os braços... Mãos... Cintura... Um laço... Os lábios... O calor... É amor?... A cama... Nós na interação em castidade e o tempo na cidade congelado ao nosso redor.

Estávamos zen e num zoom-in fazíamos um closer do beijo que decodificava o choque de prazer que sentíamos. Parecia uma incorporação de sentidos mágicos. Dois corpos celestes desabrigando-se do espaço e tempo zerados. Uma sinuosa trama de entregas... Suspiros! É festa!... O zíper... Encosta. O peito... Respeito?... Carinho... Os lençóis... Um nó... Pernas e braços nus... Pão-Francês... Garganta... Leite... Pescoço... Lingerie... Os beijos... Uma cena... Incenso... No quarto... Alfazema e também um perfume de rosas... Pecado nos quadris...

Eram melodias de maestro, sem ensaio, sem plateia. Eram as linhas implicitas dos nossos olhares. Os acordes eruditos do piano insistindo em tocar uma melodia fértil e dionística. As partituras do corpo dela faziam-se de melodia. Como bailarina, ela interpretava um perfeita pianista, agarrou-me por trás como se abraça uma harpa, e servi de instrumento. Ela me guiava num tension-release como ao ballet moderno de Martha Graham. Pensei que estivesse flutuando tamanha intensidade... Carnudos lábios... Negrume.

Numa ‘volta’ segurei seu corpo e girei-a sobre mim. `Contratempos`. Voltamos para os tombes e cabriolés, entrelaçamo-nos seguindo mise-en-scenes calorosos. Bailamos suados em pas-de-deux. Empinadas... Rebeldias... Que figura bela, quase simétrica de formas geométricas desenhava com ela em meu colo. Ela sem collant, eu colando-se... Sapateado... Fox Trot... Duelavamos compenetradamente irracionais... Alma... Corpo... Num ritual sagrado-profano dualístico... Um espetáculo de energias multidimensionais... Aplausos! Assovios! Chegamos ao apogeu ufânico do prazer.

Enfim o cansaço... O sono... A madrugada... Embrulhado nos abraços e entrelaçado... No relance dessa seqüência me apaixonei. O despertar... "Minha bela adormecida de Tchaikovsky", dizia eu em voz baixa enchendo-a de beijos minuciosos desde as mãos suaves, até os seios medrosos que se escondiam no sutiã, naquele vestido florido que estava jogado no chão. Arranquei-lhe tudo. "Perfeita", eu balbuciava.

Nos meus cálculos, minha puberdade começou aos oito anos se eu contasse a primeira vez que debrulhei um brotinho avermelhado, mas, de fato, foi aos dezesseis anos que eu projetava a barba, a voz... Aos dezoito, eu era um homem feito, e meu coração já começara a descontrolar-se com batidas apaixonadas. Desde então, vinte e cinco anos se passaram, namoros, noivados e casamentos falidos, e ali estava eu novamente, numa nova composição e cheio de esperança. Não era uma prostituta, era uma bailarina adormecida.

Ela despertou e pediu café, então levantei-me com passos imprecisos ainda numa espécie de transe até a cozinha. Som BG da porta que me despertara da derrota. Na mesma velocidade em que despiu-se, na noite passada, eficientemente vestiu-se, e sem maquiagem, sem café, partiu deixando um bilhete que dizia "Uma noite... Um sonho... Mas peço que guarde esse sonho por mim, não posso seguí-lo. Meu único sonho é o palco". Ao terminar de ler, sua presença foi se reduzindo a uma mancha desbotada, e sua imagem distorcia meus sentidos, que desapareceu como um vulto, como zoom-out seco e amargo.


Velas e terços... Lenço e patuá.... Incenso e chamas no meu travesseiro.... Taças quebradas próximo à cama... Sangue no meu pé direito... "Não era só sexo!", eu gritava em prantos, como um muleque indefeso magoado... "Não era só sexo!", essa foi a canção do dia inteiro... Rua fria, sob a lua morta... Nem lembro ao menos seu codenome... De volta ao clube decadente... De volta às caçadas noturnas sem sentido... Às canções líricas do piano envenenado e envelhecido... Anônima, café e melodia.

2 comentários:

  1. Nooossa Jeff!Enormeee esse hein?rss...amanha terminarei de ler!Até agora tá bem legal!

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  2. Já disse que vc tem o dom da palavra, né? Utiliza uma riqueza de detalhes que me faz viver o conto. Foi uma ótima leitura! Parabéns!

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